Treinando com os quenianos, no Quénia
Fonte: Contra-Relógio por Pedro Cerize
Um atleta amador brasileiro decidiu ir até ao Iten no Quénia, a meca dos corredores para treinar e aperceber-se como é o dia-a-dia destes super-corredores. Eis o seu artigo:
"Eles levam muito a sério o desporto, treinam 3 vezes por dia e não fazem nada do que é recomendado pelos nutricionistas.
Já estamos acostumados ao fato de ver atletas do Leste Africano dominarem as corridas. Resignamo-nos ao fato de que eles são imbatíveis, que nasceram para correr e que, portanto, estão numa categoria à parte. Mas nos esquecemos de que a britânica Paula Radcliffe detém o recorde mundial da maratona (2:15:25).
Na minha curiosidade científica, li artigos médicos que não encontraram diferenças relevantes em nenhum parâmetro fisiológico que explicasse o domínio desses atletas. Neste ano li dois livros sobre o assunto: "Running with the Kenyans", de Adharanand Finn, e "More Fire", de Toby Tanser. Muitos mitos caíram após essas leituras.
E cresceu minha curiosidade de conhecer o Quênia, mais especificamente os planaltos às margens do Rift Valley, terras dos Kalenjin, uma das 42 tribos daquele país. A 340 km ao norte da capital Nairóbi fica Eldoret, morada de corredores famosos. Mas a 30 km de Eldoret, a 2.400 metros de altitude está ITEN, a meca dos corredores, um pequeno vilarejo de 4 mil habitantes. De lá já saíram mais de 20 recordes mundiais.
Uma dessas recordistas, Norah Kiplagat, fundou o HATC (High Altitude Trainning Center). Um local dedicado ao treino de atletas de alto rendimento e também amadores em busca de melhorar suas marcas. Com instalações confortáveis, sem luxos desnecessários, oferece o ambiente adequado para o ocidental que quer vivenciar a experiência de treinar no Quénia. Pela hospedagem, com 3 boas refeições diárias, o custo é de 45 euros por dia em quarto individual, ou 35 euros em quartos com mais pessoas.
Cheguei em ITEN no dia 12 de setembro. Dia bonito com muito ar puro e temperatura ao redor de 15 graus. Perfeito para uma corrida. Mesmo cansado da longa viagem, saí para fazer um treino de reconhecimento. Havia chovido à noite e, com o dia limpo, as estradas estavam em perfeito estado para corrida. Eu estava me sentindo muito bem, mas, de repente, algo parecia errado. Olhei para o GPS e estava mantendo 5 min/km, um ritmo confortável para meus treinos. Mas meus pulmões me diziam algo diferente. Estava ofegante como numa prova de 10 km. Era o efeito da altitude. Sabia que iria ocorrer, mas não imaginava que fosse tão marcante.
Depois de algum tempo, fui ultrapassado por alguns atletas, correndo relaxadamente. Apesar da tentativa de esconder meu esforço, não fui capaz de acompanhar o grupo. Corri pouco mais de uma hora e senti que a coisa seria mais difícil do que eu imaginava. Meu único consolo era ser cumprimentado o tempo todo pelas crianças locais com o famoso: "How are you, Mzungu?" com a mão levantada aguardando um "Hi Five". Depois de algumas dezenas de cumprimentos nos dias que se seguiram, acabei pegando um resfriado que felizmente só durou dois dias. Dali em diante, preferi apenas responder "Fine, and you?".
QUAL O SEGREDO DELES? Mas os leitores devem querer saber como os quenianos treinam e o que comem. Qual é o segredo desses atletas? Junto com um colega do Clube Pinheiros, recolhi 25 pares de ténis para levar para os corredores de lá. Eles realmente precisam. É um mito que correm descalços. Com isso fiz alguns amigos e acompanhei o trabalho do pessoal do Exército que estava acampado em Iten, ao lado da pista de atletismo chamada kamerin (caminho estreito).
Apresento uma semana típica de treino dos atletas. Treinos básicos: corrida matutina, em jejum, que começa por volta das 6 horas e dura de 40 minutos a 1h10; ritmo moderado ou fraco. Após esse treino, tomam café da manhã, que consiste exclusivamente de tchai (chá com leite e muito açúcar). Após o tchai, na segunda-feira tem tiros em subida; na terça, treino de pista, em grupo, e muito forte. Descanso na quarta. Fartlek (1 minuto fraco x 1 minuto forte) em grupo na quinta. Subida contínua de 1 hora na sexta e longo no sábado. Após o segundo treino, almoço e cama. O descanso é fundamental para o treino desses atletas. À tarde, outro treino leve, algumas vezes substituídos por exercícios para melhorar a forma de correr e alguns alongamentos. Domingo vão à missa pela manhã e alguns treinam leve à tarde.
SERIEDADE E DIETA. Existem vários grupos de corrida, mas os treinos-chave ocorrem na terça, na pista; na quinta, o fartlek; e no sábado, o longo. Nesses dias, os grupos se reúnem e o final do treino, que sempre tem esforço progressivo, termina em clima de competição. Nesses dias, só os bons se destacam; vale a pena assistir. Eles dão muita importância ao treino em conjunto. Nesses grupos de até 200 atletas, existe um clima sério e ninguém conversa durante a corrida, mesmo que leve. O estímulo à melhoria é constante e cada um pode aferir seu estado atual e sua evolução, correndo ao lado da elite mundial do atletismo. E a melhor régua de comparação e um motivador inigualável.
Outro ponto importante é a alimentação. Basicamente fazem tudo diferente do que os nutricionistas recomendam por aqui. Só comem 3 vezes ao dia. A dieta é muito centrada em carboidratos, principalmente o ugali, uma forma de polenta de milho. As fontes de proteínas são o leite, grãos cozidos, um pouco de ovos e raramente carne. Não há comida processada e muito pouca gordura na dieta.
Tentei seguir ao máximo possível o ciclo de treino local. Obviamente, não era possível fazer treinos que exigissem intensidade muscular elevada, pois o pulmão não permitia. Mesmo treinando entre 2 e 3 vezes ao dia, minhas pernas pareciam descansadas. Em alguns treinos, seguia o caminho para Eldoret, que consistia de uma longa e suave descida. Com isso, conseguia manter um ritmo mais próximo ao da maratona. Era a única maneira de correr rápido. Mas difícil manter a confiança sendo o mais lento na pista de treino.
Só para ilustrar, numa de minhas conversas com atletas locais, me perguntaram qual era a minha prova. Respondi que era a maratona. Em seguida quiseram saber qual era o meu tempo. Respondi em inglês que meu objetivo era "Two Fifty" (2h50). Alguém me indagou? "Two Fifteen? It's not good" (2h15? Isso não é bom). Para um queniano, quem corre em 2h50 não ganha nada. E se não se ganha nada, para que correr? Corrida não passa de um trabalho para eles. Quem faz faxina para se divertir?
O HATC oferece a combinação ideal entre o jeito queniano de treinar e as amenidades ocidentais, como água quente no quarto, internet, TV a cabo, academia bem montada e fisioterapia. E o preço é muito bom. Após uma semana já estava me sentindo bem melhor e os treinos ficaram mais fáceis. Pela primeira vez senti me um profissional. Tudo girava em torno da corrida. A alimentação, o sono e as conversas.
Fica difícil dizer qual foi o efeito do treino no Quénia, mas pessoalmente foi gratificante. É inspirador ver um povo tão sofrido ser capaz de mudar de vida através da corrida. O segredo está na dedicação e na devoção total ao objetivo. Para todos nós amadores, existe um limite. Não interessa qual é o tempo, mas sim quão próximo estamos de nosso máximo. Ter a curiosidade de descobrir esse número e a disposição de fazer o que tem que ser feito me faz admirar um corredor, não necessariamente seu tempo de chegada."